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Brasil bate recorde de assassinatos de trans e travestis


O Brasil bateu seu próprio recorde de assassinatos contra mulheres trans e travestis em 2020, com um total de 175 casos de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), responsável por um levantamento lançado nesta sexta-feira, 29, Dia Nacional da Visibilidade Trans. São Paulo segue pelo segundo ano consecutivo como o Estado que registra o maior número absoluto de ocorrências (29), mas especialistas acreditam que há uma subnotificação de casos e esse total pode ser ainda maior.

O recorde havia sido registrado pela última vez em 2017, quando foram assassinadas 169 pessoas trans que se identificavam com o gênero feminino. O aumento no último ano, entretanto, é especialmente preocupante quando consideram-se as medidas de isolamento social impostas pela pandemia do coronavírus, frisa Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e responsável pelo dossiê da entidade.

"A gente tem uma dificuldade para entender esse cenário de violência, porque envolve uma questão multifatorial, como a falta de acesso a políticas públicas, precarização da condição de vida, agendas antitrans e discursos de ódio que assumem a esfera pública", aponta, frisando que houve ainda um aumento de 50% nas tentativas de homicídio contra essa população. "Esses assassinatos são recados para as trans que continuam vivas."

Em suas estatísticas de 2020, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não categorizou nenhum dos 29 assassinatos listados pela Antra como "Crimes de Intolerância", que incluem os delitos motivados por discriminação racial, religiosa ou sexual. Na verdade, nenhuma morte do ano passado foi enquadrada nessa categoria.

Em nota enviada à reportagem, a SSP afirma que "tem intensificado as ações de combate à violência de gênero e intolerância" e cita a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), na capital. A Secretaria também informa que é possível incluir nome social e indicação de "homofobia/transfobia" nos registros de ocorrência desde novembro de 2015.

Mesmo assim, a disparidade dos registros pela SSP não ocorre apenas em relação ao dossiê da Antra, mas aos dados do Disque 100, número do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que recebe denúncias sobre violações de direitos humanos. Apenas no primeiro semestre do ano passado, a pasta registrou 187 ocorrências envolvendo pessoas LGBTI+ no Estado de São Paulo.

"Primeiro, há uma negação do sistema público sobre essa violência, dizendo que ela não existe e, logo, não pode ser enfrentada. Tudo é motivo, menos a transfobia", aponta Symmy Larrat, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). "Soma-se à subnotificação de violência o fato de não sermos quantificadas pelo IBGE. E uma população que não é vista também não é incluída na política pública, logo, não se muda essa realidade."

No ano passado, a Antra e a ABGLT se uniram à Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública (RENOSP) LGBTI+ e à Fundação Getúlio Vargas (FGV) para a elaboração de um protocolo policial para o enfrentamento da violência LGBTfóbica no Brasil. "Mesmo depois da criminalização da LGBTIfobia pelo Supremo Tribunal Federal, ainda temos poucos casos registrados, apesar de a violência não ter diminuído", explica Thiago Amparo, professor de Direito da FGV-SP, que diz enxergar um "descompasso" entre os crimes e a resposta do sistema policial e judiciário.

O objetivo é que esse protocolo sirva de base para um treinamento específico a agentes de segurança pública na forma como abordar crimes e vítimas de LGBTIfobia, assim como evitar que o teor discriminatório dessas violências não seja apagado em registros oficiais. "Precisamos aprimorar as polícias, fazer com que elas estejam mais preparadas e com ligação a outros equipamentos da sociedade civil que tratam dessa questão. A polícia está aberta a registrar essas violências, mas é necessário entender que tipos penais compõem a LGBTIfobia, para termos dados sobre esses casos", observa Amparo.

"No caso da homotransfobia como crime de racismo, há uma dificuldade a mais por má vontade interpretativa de parte das delegacias. Outra, segundo relatos, é que delegacias não querem colocar no Boletim de Ocorrência a motivação homotransfóbica, alegando que não está provada", explica Paulo iotti, diretor-presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e Doutor em Direito Constitucional. "Há outras dificuldades, mas essas parecem ser algumas das principais. Capacitações e sensibilizações das polícias são indispensáveis para se superar isso."

Ainda em setembro, o Ministério Público do Estado de São Paulo criou o Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância (GECRADI). A iniciativa está programada para começar em fevereiro. Seu objetivo é ter uma política criminal "voltada a essa atuação de abrir as portas e aperfeiçoar a comunicação com entidades que se dedicam a esse assunto", explica Arthur Lemos, secretário de políticas criminais e assessor do procurador-geral de Justiça.

"Acreditamos que isso ajude de alguma forma a prevenir esses delitos, com políticas públicas voltadas a ocupar um espaço que hoje não existe", explica Lemos. "Reconhecemos que existe sim uma agressão gratuita por pura intolerância, então queremos identificá-la e, onde for necessário, desenvolver uma política pública para que isso seja alterado. Estamos nos mexendo para que possamos alterar esses dados."

País contraditório

Ativistas e especialistas em direitos LGBTI+ ouvidos pelo Estadão apontam que mesmo com a criminalização da LGBTIfobia pelo STF e com o recorde de 30 vereadoras transexuais e travestis eleitas no ano passado, o País pouco avançou no enfrentamento de violências contra essa população. Na verdade, há quem acredite até que ele tenha regredido.

Na primeira segunda-feira deste ano, 3 de janeiro, o Brasil registrou a vítima mais jovem da transfobia: a cearense Keron Ravach, de apenas 13 anos, foi morta a facadas, pauladas, socos e chutes, e ainda teve os olhos perfurados pelo autor do crime, outro adolescente de 17 anos.

"Para entender o quanto a identidade de gênero está presente na motivação desses crimes, é preciso observar a intensidade e brutalidade com que eles acontecem, principalmente com requintes de crueldade. Quem morre apedrejada na luz do dia sem contar com a empatia de quem está em volta?", observa Bruna, que aponta também como, até 2020, a vítima mais jovem de transfobia que se tinha registro era uma adolescente de 15 anos.

Mesmo entre as deputadas que conseguiram se eleger no ano passado, os ataques e ameaças de morte continuam uma realidade. Em dezembro, reportagem do Estadão apontou que, antes mesmo de tomarem posse, Duda Salabert (PDT-MG) e Benny Briolly (PSOL-RJ) sofreram ameaças e ofensas diretas.

Érika Hilton (PSOL), a vereadora mais votada da capital paulista, afirma que tem sofrido com esse tipo de perseguição desde 2018, quando foi eleita codeputada estadual e encontrou um muro pichado na faculdade em que estudava, com os dizeres "travesti eleita morta". "Eu era muito inexperiente nesse sentido e achava que trazer visibilidade a isso daria legitimidade a outros agressores fazerem o mesmo", relembra a parlamentar ao explicar por que não denunciou formalmente a ameaça.

No ano passado, uma funcionária sua que trabalhava em sua campanha à Câmara Municipal foi agredida na Avenida Paulista enquanto distribuía panfletos com o rosto de Érika. Após eleita, ela voltou a ser ameaçada, desta vez pela internet, e registrou uma ocorrência contra 50 pessoas que lhe enviaram mensagens públicas de ódio. Nesta quinta-feira, 28, Érika registrou um boletim de ocorrência após ter seu gabinete invadido por um homem que ameaçou "arrancar a cabeça" de sua chefia e buscava pelo telefone e por informações pessoais da vereadora. A invasão aconteceu na terça-feira, 26.

"O processo da minha funcionária, Patrícia Borges, está estagnado. Os 50 processos dos crimes online já estão encaminhados e aguardamos as informações das redes sociais. E, sobre o B. O. da minha ameaça, recebi hoje um telefonema do delegado responsável pelo caso, se preocupando e se interessando", explica a vereadora, que tem andado com seguranças particulares desde então.

Ainda assim, ela acredita que há uma "negligência sobre mortes de pessoas trans, negras e indígenas". "O Estado esconde ou manipula números para que não tenhamos as estatísticas bem colocadas e denunciemos de forma explícita qual a realidade do Brasil. Isso faz parte de um projeto político de negar a transfobia e a humanidade de pessoas travestis e trans."

No mesmo dia em que o gabinete de Érika foi invadido, a covereadora Carolina Iara, da Bancada Feminista (PSOL), teve dois tiros disparados em frente à sua residência, em São Paulo. "O fato não foi enquadrado na LGBTQIfobia, mas como uma ameaça e atentado de cunho político, porque não sabemos se existem motivos a mais do que ser uma mulher trans e negra, o que já é uma grande coisa", relata.

Antes, Carolina conta que quando foi eleita recebeu uma "enxurrada" de assédios sexuais por suas redes sociais. "Essa é a primeira vez [que sofro alguma tentativa de ataque] e foi o que mais me surpreendeu, porque da mesma forma que a Marielle [Franco] foi morta sem receber uma ameaça antes, fizeram dois disparos na porta da minha casa sem nenhum aviso prévio."

Bruna Benevides aponta que o Brasil não superou apenas o próprio recorde em assassinatos de mulheres trans e travestis em 2020, mas foi novamente o País com maior número desses casos, pelo 12º ano consecutivo, de acordo com a ONG Transgender Europe. México e Estados Unidos, 2º e 3º colocados na lista internacional, registraram respectivamente 57 e 28 homicídios contra essa população. "O País que mais elege pessoas trans não pode continuar o que mais assassina pessoas trans."




*Terra

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